Crônica escrita a partir do romance A revolta dos feios (em produção)
por Luana Morena
− Ei, onde pensa que vai? Você não soube? − Replicou a bela negra, de olhos amendoados e cabelo lindo, alto, cacheado, a seu marido,
que abria silenciosamente a porta da cozinha para livrar-se do lixo azedo há semanas.
− Soube do quê, Gislene?
Ela desviou o olhos e olhou para a parede com um olhar cheio de significados, todos tristes.
− Mataram o Jessé ontem de madrugada.
− O quê?!
− Ele foi procurar a Samantha, não quis escutar ninguém e...
Bem, a mulher não conseguiu completar a oração e caiu aos prantos. Seu marido deu um longo suspiro.
− Mas nós estamos adoecendo neste lixo, mulher, e eu não prefiro uma morte lenta!
− Você não entende, homem de Deus, esmagaram a cabeça dele com uma pedra! − Um minuto de estarrecido silêncio...
A porta da cozinha foi fechada, os sacos de lixo voltaram para a área de tanque, e os dois humanos conversaram nervosos sentados em poltronas da sala. Debateram e deliberaram.
− Temos que ir para um condomínio neutro, é o único lugar seguro. Podemos usar o dinheiro da poupança, vender o carro, pedir ajuda ao seu pai...
E assim combinado, conversaram com a família dela pelo skype e ficou tudo acertado sobre a partida deles. Gislene tinha uma beleza entorpecente, seu maior crime, e seria suicídio permanecerem, onde não havia nem prefeito, nem sequer polícia mais.
Juntaram, então, as coisas de mais necessidade e as de mais valor ali mesmo, na véspera da partida; comeram da comida entregue em carro forte e assistiram ao noticiário, que tratou dos revoltosos:
− Os feios tomaram ontem o Congresso Nacional, num cenário de guerra que ninguém jamais cogitou acontecer no Brasil. O semicírculo, onde funcionava a Câmara dos deputados foi bombardeado, parcialmente destruído e quatro deputados
que se recusaram a sair, morreram com a explosão.
A notícia seria mais chocante para o casal, caso os eventos anteriores não tivessem sido também tão inacreditáveis. Tempos difíceis no berço esplêndido. Ela adormeceu na poltrona maior. Ele, febril, olhava perdido para os cantos da sala, escutando os ratos rondarem. Amanheceu.
− O que você está fazendo? − Replicou a bela negra a seu marido, que abria silenciosamente a porta da cozinha
para livra-se do lixo azedo há semanas.
O homem virou-se para a mulher com olhos amarelos, perdidos e assustados.
− Você não vai acreditar, mas tem ratazanas me mordendo de madrugada! Estou todo mordido! E infectado!
E numa tristeza tão espontânea, brotada sem autorização, o homem começou a chorar como uma criança, cada vez
mais alto. Gislene paralisou-se estatelada de aflição e desespero, e ficava também apreensiva de que alguém o escutasse.
O marido, de joelhos, gritando e se escorando naquele lixo fétido, foi acudido pela esposa, que tentou calar-lhe a boca,
do que ele se esquivava e gritava ainda mais!
− Escutou isso? Parece criança chorando.
− Onde é?
− Vamo ver...
O choro não cessava, e guiava os algozes, mesmo depois, quando virou riso, um riso descompassado e assustador, que se espalhava pela casa com o pobre doente correndo de um lado a outro fugindo. Chegaram à casa, as hienas; traficantes de bonecas, atrás de belas crianças, belas mulheres e belos homens que pudessem virar belas travestis. Ganharam força com a revolta e até o apoio de alguns revoltosos. Chegaram devagar, e ao verem o vetor
da leptospirose com um olhar insano, um deles atirou-lhe uma bala de espingarda bem na cara, desfigurando-lhe
a feiura, que não servia para o negócio.
Gislene, suja de sangue, morreu eletrocutada, pelo objeto de luxo que era. Morreu linda, com seu vestido clássico, azul com bolinhas brancas e com um rosto irresistível de choro. Depois disso, os homens fuçaram tudo, as malas, os armários, o computador. Pareciam felizes com o emprego. Não se incomodaram sequer com o mal cheiro ou com o rato que apareceu e parecia assistir ao terrível desfecho. Saíram pela porta da frente, com a moça nos braços. Chamaram o frigorífico pelo rádio e enquanto aguardavam, brincavam de colocar a mão debaixo do vestido da danada.
por Luana Morena
− Ei, onde pensa que vai? Você não soube? − Replicou a bela negra, de olhos amendoados e cabelo lindo, alto, cacheado, a seu marido,
que abria silenciosamente a porta da cozinha para livrar-se do lixo azedo há semanas.
− Soube do quê, Gislene?
Ela desviou o olhos e olhou para a parede com um olhar cheio de significados, todos tristes.
− Mataram o Jessé ontem de madrugada.
− O quê?!
− Ele foi procurar a Samantha, não quis escutar ninguém e...
Bem, a mulher não conseguiu completar a oração e caiu aos prantos. Seu marido deu um longo suspiro.
− Mas nós estamos adoecendo neste lixo, mulher, e eu não prefiro uma morte lenta!
− Você não entende, homem de Deus, esmagaram a cabeça dele com uma pedra! − Um minuto de estarrecido silêncio...
A porta da cozinha foi fechada, os sacos de lixo voltaram para a área de tanque, e os dois humanos conversaram nervosos sentados em poltronas da sala. Debateram e deliberaram.
− Temos que ir para um condomínio neutro, é o único lugar seguro. Podemos usar o dinheiro da poupança, vender o carro, pedir ajuda ao seu pai...
E assim combinado, conversaram com a família dela pelo skype e ficou tudo acertado sobre a partida deles. Gislene tinha uma beleza entorpecente, seu maior crime, e seria suicídio permanecerem, onde não havia nem prefeito, nem sequer polícia mais.
Juntaram, então, as coisas de mais necessidade e as de mais valor ali mesmo, na véspera da partida; comeram da comida entregue em carro forte e assistiram ao noticiário, que tratou dos revoltosos:
− Os feios tomaram ontem o Congresso Nacional, num cenário de guerra que ninguém jamais cogitou acontecer no Brasil. O semicírculo, onde funcionava a Câmara dos deputados foi bombardeado, parcialmente destruído e quatro deputados
que se recusaram a sair, morreram com a explosão.
A notícia seria mais chocante para o casal, caso os eventos anteriores não tivessem sido também tão inacreditáveis. Tempos difíceis no berço esplêndido. Ela adormeceu na poltrona maior. Ele, febril, olhava perdido para os cantos da sala, escutando os ratos rondarem. Amanheceu.
− O que você está fazendo? − Replicou a bela negra a seu marido, que abria silenciosamente a porta da cozinha
para livra-se do lixo azedo há semanas.
O homem virou-se para a mulher com olhos amarelos, perdidos e assustados.
− Você não vai acreditar, mas tem ratazanas me mordendo de madrugada! Estou todo mordido! E infectado!
E numa tristeza tão espontânea, brotada sem autorização, o homem começou a chorar como uma criança, cada vez
mais alto. Gislene paralisou-se estatelada de aflição e desespero, e ficava também apreensiva de que alguém o escutasse.
O marido, de joelhos, gritando e se escorando naquele lixo fétido, foi acudido pela esposa, que tentou calar-lhe a boca,
do que ele se esquivava e gritava ainda mais!
− Escutou isso? Parece criança chorando.
− Onde é?
− Vamo ver...
O choro não cessava, e guiava os algozes, mesmo depois, quando virou riso, um riso descompassado e assustador, que se espalhava pela casa com o pobre doente correndo de um lado a outro fugindo. Chegaram à casa, as hienas; traficantes de bonecas, atrás de belas crianças, belas mulheres e belos homens que pudessem virar belas travestis. Ganharam força com a revolta e até o apoio de alguns revoltosos. Chegaram devagar, e ao verem o vetor
da leptospirose com um olhar insano, um deles atirou-lhe uma bala de espingarda bem na cara, desfigurando-lhe
a feiura, que não servia para o negócio.
Gislene, suja de sangue, morreu eletrocutada, pelo objeto de luxo que era. Morreu linda, com seu vestido clássico, azul com bolinhas brancas e com um rosto irresistível de choro. Depois disso, os homens fuçaram tudo, as malas, os armários, o computador. Pareciam felizes com o emprego. Não se incomodaram sequer com o mal cheiro ou com o rato que apareceu e parecia assistir ao terrível desfecho. Saíram pela porta da frente, com a moça nos braços. Chamaram o frigorífico pelo rádio e enquanto aguardavam, brincavam de colocar a mão debaixo do vestido da danada.